Por que tanta gente sofre com crises de enxaqueca? Darwin explica
Por Dr. Ricardo Afonso Teixeira*
Numa noite de tempestade, ainda no Paleolítico, uma tribo se reúne na caverna, ao redor do fogo, e a mãe aponta para o filho uma erva e lhe diz para ter cuidado, pois aquilo lhe provocou uma forte dor de cabeça no dia anterior e que pode ser um veneno. O pai balança a cabeça e concorda com o alerta, e fala que costuma ter essa dor quando fica muito tempo sem comer ou dorme demais após uma refeição, especialmente durante o dia. O filho emenda: “mas pai, você já me ensinou que muito tempo sem comida não ajuda, caso eu precise lutar e, dormindo demais, posso acabar virando comida de onça”. Para as pessoas que sofrem de enxaqueca, essa história pode não parecer tão distante.
São várias as causas de dor de cabeça, mas a enxaqueca é uma das mais comuns, afetando 20% das mulheres, um pouco menos de 10% dos homens, e tem como fator determinante o próprio código genético do indivíduo. Quando uma condição médica com forte influência genética tem uma frequência tão alta na população, podemos interrogar se esta condição não representaria uma vantagem evolutiva. As pessoas com enxaqueca seriam mais evoluídas?
De acordo com a teoria da evolução e seleção natural, os seres mais adaptados têm maior chance de sobreviver e se reproduzir. Mas como imaginar que um indivíduo que tem dores de cabeça possa ser mais “adaptado” que aquele que não as possui? A dor, de forma geral, é um mecanismo de defesa a situações potencialmente danosas ao corpo. Por sentirmos dor, retiramos nossa mão de uma água fervente e não nos queimamos.
Sabe-se que indivíduos com enxaqueca têm uma sensibilidade aumentada a estímulos sensoriais, visuais, auditivos, olfativos. Apresentam também menor tolerância a alguns desafios, tais como jejum, insônia, excesso de sono, estresse físico e emocional. Podemos argumentar que esta sensibilidade apurada faz com que o indivíduo com enxaqueca evite de forma mais eficaz situações e ambientes complexos que poderiam ser interpretados como predatórios. A maior recomendação para que esses “seres evoluídos” tenham uma boa qualidade de vida é evitar estímulos que sabidamente provocam crises. Para que ficar provocando onça com vara curta?
Alguns estudos têm revelado que a prevalência de enxaqueca na população vem aumentando ao longo das últimas décadas, e uma possível explicação para esse fenômeno é que as pessoas se confrontam de forma mais frequente com estímulos desencadeadores da dor descritos acima. Então deveríamos recomendar que os indivíduos com enxaqueca vivessem numa redoma de vidro?
Charles Darwin foi um homem que sofreu dores de cabeça recorrentes e incapacitantes e que, provavelmente, correspondiam a crises de enxaqueca. Talvez isso contribuísse, em parte, para sua fama de antissocial. Nem por isso deixou de rodar o mundo a bordo do Beagle e virar de cabeça para baixo o pensamento da humanidade.
O indivíduo com enxaqueca deve aprender a reconhecer quais são os estímulos que desencadeiam suas crises e evitá-los quando possível. Na época de Darwin, era prática comum colocar as metades de uma laranja nas têmporas para tentar aliviar a dor de cabeça. Hoje temos ferramentas mais eficazes. Na hora das crises, deve-se usar analgésicos da forma mais precoce possível, pois depois de um certo tempo de dor, a chance de o remédio ajudar passa a ser menor. Quando as dores passam a ser frequentes, o uso banalizado de analgésicos pode até piorar a situação e, na maioria das vezes, um tratamento com outros tipos de remédios é indicado. A visita a um médico é importante não só para orientar o tratamento, mas também para avaliar se a origem da dor é realmente a enxaqueca.
*Ricardo Afonso Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp e diretor do Instituto do Cérebro de Brasília.
Matéria originalmente no site do Correio Braziliense.
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